Prof. Dr. Ricardo Ferreira Bento é o entrevistado das Páginas Azuis, da Revista Vox Otorrino, edição novembro/ dezembro
27/01/2014
Líder Involuntário, por Eliana Antiqueira
Chefe de um dos mais importantes serviços de otorrinolaringologia do país, professor por vocação, um dos pioneiros do implante coclear, Dr. Ricardo Bento é também santista roxo e o maior criador do peixe saint peter do Brasil. Um homem com muitos interesses e histórias interessantes.
A otorrinolaringologia foi a sua primeira opção como especialidade médica?
Não, isso veio durante a faculdade. Tive um professor que dava um curso muito interessante de otorrino e isso despertou em mim esse interesse. Esse professor é o Clemente Ribeiro de Almeida, que continua na ativa. Sempre gostei muito de mexer com coisinha pequena, de montar navio, essas coisas. Aí comecei a me interessar por ouvido, cirurgia otológica, que exige essa habilidade manual.
O senhor ainda tem esse hobby de montar coisas?
Não. Não tenho mais tempo. Mas fiz isso durante muito tempo. Quando era moleque, adolescente passava horas entretido com essas coisas.
Hoje o senhor chefia um dos mais importantes serviços de otorrinolaringologia do país. Ao que o senhor atribui a sua ascensão profissional?
Existem em qualquer profissão várias pessoas que se destacam, não acredito nessa história de melhor do Brasil não. A especialidade está cheia de médicos brilhantes. Acho que isso acontece mais porque eu optei por uma carreira acadêmica. Atendo em consultório particular, em clínica, até por uma questão financeira, preciso pagar as contas e, no Brasil, a carreira acadêmica é muito mal remunerada, embora seja gostosa de fazer. Gosto muito de dar aula, de aglutinar as pessoas, de ver as pessoas crescerem em volta de mim. Tenho muitos alunos, tenho mais de dois mil otorrinos atuando no Brasil que já passaram por meus cursos. Talvez por isso acabei assumindo papel de liderança meio involuntário.
No aspecto institucional da otorrinolaringologia, o senhor participou de um grupo que teve um papel fundamental para fazer da ABORL-CCF a entidade sólida que é hoje, ao consolidar e apaziguar as oposições.
Eu acho salutar que haja oposição, faz parte do processo democrático, do jogo. O que não pode é ter radicais dos dois lados. E, no final, todo mundo era amigo. E num lugar desses que ninguém ganha nada, porque os médicos que trabalham na associação estão lá de graça, é um trabalho voluntario, não tem sentido ficar brigando. Se for para brigar, vamos brigar pela gente, contra o que está errado lá fora. Brigar dentro de casa não tem sentido e acaba enfraquecendo nossa luta. E foi isso que tentamos naquela época: mudar o sistema administrativo da associação, que era muito presidencialista, para decisões mais colegiadas, com participação da diretoria. Mas o pessoal ainda não assimilou isso muito bem, mas aí acho que é até uma questão de cultura, porque o Brasil é presidencialista e o cara que senta naquela cadeira tem essa mentalidade de querer fazer as vezes do diretor executivo, de não saber delegar, mas, com o tempo, as pessoas vão se adaptando e entendendo a mecânica. A Associação tem de ter continuidade. Quando um presidente sai, não pode entrar outro e fazer tudo de novo, "quero fazer uma coisa que eu bolei". Isso não existe. Por isso tem de ter um diretor administrativo forte, que seja perene entre as administrações e, é claro, com experiência, contratado do mercado. (NE - Dr. Ricardo Bento foi presidente da ABORL-CCF de 2008 a 2010).
Existe uma unanimidade sobre sua pesquisa de que o senhor trabalho porque gosta. É o primeiro a chegar e o último a sair. Essa percepção é correta?
Sempre falo para meus alunos, meus filhos: trabalhe no que você gosta, não para ficar rico. Se fizer a coisa bem, vai estar feliz, não adianta ficar a vida inteira frustrado por não ter seguido o que queria por causa da grana. O retorno financeiro é consequência do que é bem feito. Eu trabalho porque gosto mesmo. Acordo de manhã e vou feliz para a faculdade, gosto de estar lá. Não tenho o sentimento de "ai meu Deus, tenho que ir para a faculdade, que saco". Gosto de estar lá, gosto de ensinar, gosto do contato com os alunos, gosto do ambiente acadêmico e gosto de aprender, o que acontece diariamente.
Seus alunos tem essa percepção do prazer que o senhor tem em dar aulas?
Alunos de graduação nem tanto, porque as especialidades tem um espaço muito pequeno nesse período, mas os residentes, estagiários, sim. Porque a gente está lá se dedicando, trabalho de porta aberta. Comigo não tem que marcar hora para falar, o cara entra e sai na hora que quiser.
O senhor foi um dos pioneiros a fazer o implante coclear no Brasil e chegou a desenvolver um aparelho para ser fabricado no Brasil. Por que esse projeto não foi adiante? Falta de investimento?
Desenvolvemos um aparelho aqui na época em que havia muita restrição à importação, recebemos verba do BID (Banco Interamericano do Desenvolvimento) para tocar o projeto. As universidades no Brasil produzem uma série de trabalhos, mas, a maioria das coisas que produz não consegue devolver a sociedade, fica ali uma coisa intramuros da academia. Aconteceu isso com o nosso implante coclear. Fizemos a patente e tudo, mas competimos com grandes empresas internacionais, que investem milhões de dólares continuadamente em pesquisa e desenvolvimento, e não conseguimos repassar a patente para uma empresa brasileira, ninguém se interessou, na verdade, em produzir o implante aqui. Só tem quatro empresas no mundo que fabricam implante. Mas, pouco tempo atrás conseguimos desenvolver uma prótese auditiva que tem um mercado muito maior. Só o governo brasileiro consome 270 milhões de dólares por ano na compra de aparelhos auditivos. E não há uma empresa no Brasil que fabrique esses aparelhos. São todos importados, com alíquota zero porque são equipamentos de saúde sem similar nacional. Na faculdade, tenho um departamento de engenharia dentro da otorrino e desenvolvemos uma prótese genérica de baixo custo, 1/10 do que custa por aí. Verbas públicas para pesquisas são muito escassas no Brasil, por isso nosso país está atrás de muitos países em pesquisa e desenvolvimento. Então conseguimos que todo o projeto fosse financiado por uma entidade de direito privado sem fins lucrativos, a Fundação Otorrinolaringologia, que tem entre seus objetivos o suporte à ciência e tecnologia. O produto patenteado foi oferecido para investidores privados em uma feira pública de equipamentos para deficiências, promovida pela Secretária do Estado da Pessoa com Deficiência e a patente foi comprada por uma empresa privada, porque viu uma oportunidade de negócio. O Ministério da Saúde vai comprar os aparelhos dessa fábrica e o mesmo que ocorreu com o projeto de remédios genéricos que mudou o acesso das pessoas ao tratamento médico no Brasil e no mundo. Fiquei muito feliz porque conseguimos devolver para a sociedade parte do que é investido em nós. E não é só pela economia que o governo vai ter, mas tudo que representa em geração de emprego, de renda. Aquela experiência com o implante coclear foi muito importante porque aprendemos muita coisa. Hoje, nossa equipe já fez mais de mil implantes cocleares, é uma das maiores do mundo, mas ela se solidificou a partir dessa experiência.
O senhor também coordenou programas de saúde auditiva no Ministério da Saúde para crianças em idade escolar. Como foi essa experiência? (NE - Programa Quem ouve bem aprende melhor)
Esse foi um programa maravilhoso! Na época, todo ano entrava no primeiro ano do sistema público de educação fundamental seis milhões de crianças. O BID precisava repassar uma verba ao Ministério da Educação, mas era preciso que ele atendesse algumas metas. E uma das metas era acuidade visual e auditiva dessas crianças. Aí o governo saiu correndo atrás do programa que atendessem essas metas e vieram nos procurar para que pudéssemos desenvolver algum projeto. Mas você imagina ter profissionais, otorrinos, fonoaudiólogos, sendo que tem criança no meio da Amazônia? Aí desenvolvemos um teste que a professora aplicava e fazia uma pré-triagem. Aquelas com suspeita de deficiência eram encaminhadas para o exame. Tirava uns 20% da classe. Desses, a maioria não tinha nenhum problema, mas era melhor pecar por excesso. Mas não conseguimos fazer em todas as seis milhões de crianças, todo ano, porque a gente dependia de uma estrutura que a escola tinha que ter: energia elétrica, um aparelho de vídeo, uma tv. Quando a escola não tinha, as vezes algum aluno da comunidade emprestava, mas era precário. Diante disso, em conjunto com o Ministério da Educação, passamos a atender cidades com mais de 50 mil habitantes porque nessas cidades as escolas contavam com essa estrutura básica. Por isso, atendemos três milhões de crianças. Fizemos isso por três anos. Mas não apenas identificávamos o problema. O Ministério da Saúde fechou um convênio com a gente e essas crianças eram tratadas. Desde uma coisa mais simples, como tirar cera de ouvido, até mais complexa, como uma cirurgia, era paga pelo SUS. Era um negócio maravilhoso, mas aí entra de novo o negócio da democracia. Quando saiu Fernando Henrique e entrou o PT, os caras extinguiram o programa porque não iam dar continuidade a um negócio que, apesar de certo, não era deles. Aí recomeça tudo do zero, gasta o dobro e não sai do lugar.
O senhor citou um dos obstáculos à falta de implantação desse programa era a falta de profissionais fora dos grandes centros. Como se equaliza esse problema?
Uma coisa é ter médico de atenção básica, que tem de estar em todos os lugares. Na essência, o programa Mais Médicos é bom e necessário, porém infelizmente da maneira como foi feito tem um caráter eleitoreiro. Vamos o problema da saúde trazendo mais médicos, quando o problema da saúde não tem a ver só com a quantidade de médicos? É a mesmo coisa que contratar um monte de cozinheiros para combater a fome! Mas o cara chega, não tem panela, não tem comida pra fazer... O Mais Médicos é mais ou menos isso. Não há estrutura adequada, investimento e principalmente gestão pública no Brasil. Quando esse médicos que vierem pedir exames ou encaminhar para serviços secundários ou terciários que atendem as doenças mais graves não terão onde fazê-lo. Enormes filas para cirurgias nos principais hospitais públicos do país. Na nossa área por exemplo, por uma simples amigdalectomia, as crianças tem que esperar anos para serem operadas, cirurgias oftalmológicas, hérnias, enfim, todas as áreas. O SUS é um sistema maravilhoso no papel, talvez um dos mais avançados do mundo, baseado no sistema inglês. A saúde é uma pirâmide. Na base, estão os médicos da atenção básica: os clínicos gerais, pediatras, ginecologia e obstetrícia; depois vem os da atenção secundaria, terciária e que vão se contra referindo. Por exemplo, na Inglaterra você não consegue marcar uma consulta direto com o especialista no sistema público. Primeiro o paciente passa pelo clinico geral do bairro e, se ele não conseguir resolver, aí encaminha. Assim 80% dos casos acabam sendo resolvidos na atenção básica mesmo. Para levar o médico para o interior, além de criar faculdades de medicinas locais, porque as pessoas estudam e ficam por sua região, tem que estimular que o cara faça carreira nesses lugares. Porque levar a família para um lugar que não tem nada, não tem escola para os filhos, nenhuma diversão, desestimula o profissional. Nem ganhando muito porque dinheiro não é tudo.
A qualidade da formação médica hoje é bastante sofrível. O senhor como acadêmico observa isso?
Sem dúvida. Uma coisa é a formação técnica/cientifica e outra é a formação cultural da vida profissional. E isso é bem perceptível nas residências, porque tem poucas residências de otorrinos mesmo no Brasil. Porque a maioria desses 90, mais ou menos isso, serviços de otorrino que tem por aí não são de residência médica. É um trabalho em escravo que lá o moleque para trabalhar sem supervisão nem nada e falam que estão dando um estágio. O foco não é formar um especialista, mas ter uma mão de obra barata. Tem de aumentar o número de boas residências. No Brasil, você conta nos dez dedos as residências que valem.
Além de médico o senhor também é empresário. Da para conciliar as duas profissões?
Tenho uma companhia de peixes, a Royal Fish. Sou produtor de saint peter. Sempre gostei de pescar, tinha uma fazenda, comecei a criar há uns 25 anos, aí a coisa foi se profissionalizando, aumentando e hoje temos uma produção de quase cinco mil toneladas/ano de filé de peixe. Fornecemos para supermercados, hipermercados, restaurantes... É a maior empresa brasileira de peixe produzido em cativeiro.
Mas este é um universo muito diferente da medicina.
Não. Não. Eu consegui aliar a medicina ao peixe. Eu mexo com genética e num trabalho financiado pela FAPESP, desenvolvi um peixe vermelho que só eu sei como fazer. É como o xarope da Coca-Cola, os concorrentes podem tentar, mas não sabem fazer igual. Temos a genética, a reprodução, a engorda, o frigorífico, comercialização e distribuição; a cadeia vertical inteira. Como eu não tinha tempo de me dedicar integralmente ao negócio, que exige muita dedicação, vendi 50% da empresa da empresa para um banco de investimentos que colocou uma administração profissional e hoje eu dou pitaco só nessa parte de genética. De alguma forma, a medicina está presente em todos os aspectos da minha vida.
*Dr. Ricardo Bento, formado pela Faculdade de Medicina de Jundiaí, viu sua carreira deslanchar na Faculdade de Medicina da USP, onde amealha a admiração de colegas e alunos . Ex-presidente da ABORL_CCF tem no caráter conciliador sua maior habilidade.

Matéria publicada nas Páginas Azuis, da revista Vox Otorrino, uma publicação da ABORL CCF, Edição 138 / Ano XIX/ novembro/dezembro 2013 - Páginas 6 a 8.


13/04/2023
Lançamento do Livro: Manual de Dissecção do Osso Temporal
12/04/2023
Otorrino Usp em 7º Lugar no Ranque Mundial Scimago Institutions Rankings
28/02/2023
Homenagem ao Prof. Edigar Rezende de Almeida
13/02/2023
Campanha de Orientação para Cuidados das Crianças Traqueostomizadas
13/02/2023
Campanha de Orientação para Cuidados das Crianças Traqueostomizadas
13/02/2023
Campanha de Orientação para Cuidados das Crianças Traqueostomizadas
07/02/2023
Resultado final do processo seletivo para o curso de especialização em otorrinolaringologia 2023
04/01/2023
COMUNICADO - Programas de Complementação Especializada no ano de 2023.
02/01/2023
Produção Científica do Departamento de Otorrinolaringologia do Hc/FMUSP 2022.
Outras notícias